sábado, 29 de julho de 2023

Conto: "Campeão", de Cris Dakinis - Menção Honrosa no 6.o Concurso de Contos e Crônicas de Ourinhos / SP, 2023

 

Campeão

 Nenhum sinal de chuva, céu claro, sem nuvens. Já amanhecia assim. À tarde, o azul vibrante ao alto coloria a vida. No verão, o vento soprava tímido, sem ajuntar nuvens para deitar uma gota sequer de chuvisco sobre o pó da estrada, conseguia, no entanto, abrandar o mormaço do fim de tarde e refrescar a noite. Foi nesse lugar que Simões e sua família instalaram-se quando chegaram de Portugal no período pós-guerra. Uma região com muita água nas redondezas, como bem explicava o nome indígena que lhe fora dado __ Iguaba.

Simões não se cansava de admirar Campeão. Este é o boi mais bonito que existe! E relembrava a infância, quando chegara com seus pais àquela cidade. Ele espiava bois ao longe, em pasto alheio. Debaixo do céu azul e sem nuvens, o vento sorrateiro lhe voava o chapéu e o pai ria. Bichos bonitos aqueles, filho! Um dia teremos os nossos. O menino Simões ficava a sonhar com o tal dia e calculava o espaço gramado ao redor da casa onde poderia criar um boi só dele, de estimação, chegando até mesmo a escolher o nome do animal com antecedência: Campeão. Talvez por relembrar conversas acerca dos rodeios que ouvira ainda pequenino na pátria deixada além-mar; talvez porque confundisse a rotina de um boi com a de um cavalo, sonhando com uma futura glória nos páreos.

A esposa chamou-o para ajudar a servir o almoço aos fregueses, despertando-o das antigas lembranças. No espaço avarandado, todas as mesas ocupadas. Trabalhadores famintos aguardavam a vez. Eram três horas seguidas em que ele e a patroa cuidavam de atender, deitando e recolhendo pratos às mesas. E eram as horas mais quentes do dia... O calor da cozinha se espalhava para a bancada de comida e para a varanda; e o calor do sol da tarde adentrava a casa toda. Todos os dias iguais, com exceção do domingo. A família cozinhando, lavando louça, fazendo o caixa, servindo. E as mesas de refeição ocupadas, lado a lado, sorrindo-lhes com o ganha-pão.

Junto com o boi Campeão, Simões adquiriu o Choquito, outro boi, que não era elegante como Campeão, mas que lhe rendeu o prazer do investimento, podendo, desta forma, chamá-los no plural de “bois”. Seu pai, a este tempo, avançado em idade, admirava o filho a falar da rotina do pasto, discutindo acerca de gado... Realmente, dizia o pai, Campeão tem porte de artista, é bem-apessoado, de pelo brilhante, um belo animal. Foi então que aconteceu uma reviravolta de ordem econômica a Simões, comprometendo-lhe o capital. Ainda bem que, àquela altura, ele já tinha o seu teto e comércio relativamente garantidos para si e para a família, porém sentiu nos ombros o peso que o pai antes conhecera na pátria lusa. Simões precisou levantar dinheiro extra para cumprir compromissos. E o resgate disponível era vender um boi. Resolveu então vender o Choquito.

Ainda cedo, céu azul e nenhuma nuvem.  Um vento morno vinha da lagoa próxima, se bom ou mau vento, Simões não sabia, mas avistou, enquanto cuidava do pasto, o comprador que lhe fora indicado para negociar. O gajo chegou. Ficou a olhar o Choquito por meio minuto. __ Quero o outro e pago bem. A surpresa quase derrubou Simões. Como assim, o outro? Por que não tivera a ideia de guardar o Campeão? Estava claro que aquele boi ia chamar mais a atenção do comprador... Mas onde se poderia esconder um animal tão grande? Tudo isso Simões se perguntou em silêncio. Se a surpresa quase o derrubou, a responsabilidade o reergueu.

Depois que Campeão partiu, Simões era só tristeza. Dava um dó tamanho vê-lo sem o Campeão. A esposa se afligia, o pai se inquietava, os filhos se calavam... Na manhã do terceiro dia sem o boi, Simões foi atrás do fazendeiro. Daria o Choquito em troca e pagaria um valor adicional, mas traria o Campeão de volta. O fazendeiro era um comerciante ocupado e não quis conversa de devolver boi. __ Que boi esse? Já foi para o abate! Não tem mais nenhum boi teu aqui...

Ao longe, o céu azul, nenhuma nuvem. O vento sobreveio ao chapéu, voando longe. Mais distante ficou a esperança de reaver o boi Campeão. Por fim, Simões resolveu fazer novo acordo com o mercador: entregaria o boi Choquito a ele e, se dentro de dois meses, Simões não pudesse dobrar o valor de Campeão em dinheiro para lhe pagar, ele então entregaria os dois bois ao negociante. Era uma insanidade, cogitava Simões. O pai deixou-o resolver sozinho, não queria interferir. A esposa olhava-o ansiosa. Todos em casa sabiam de uma coisa: ia faltar dinheiro se Campeão voltasse. Irrecusável a proposta, no entanto, o comprador de Campeão não o quis devolver, e por maldade, pura maldade __ para que avisou? __ Mandou comunicar que o boi iria para o abate.

Simões ouvia o boi mugir toda vez que ali chegava para tentar renegociar, e era bem possível que a sua imaginação o iludisse, fazendo-o imaginar ouvir as lamúrias do boi. Porém Simões pressentia que Campeão queria voltar para o pequeno e antigo pasto. E daí, ele decidiu-se por um ato de loucura: foi ao banco mais próximo e levantou a quantia do boi a juros altos, tomou do dinheiro vivo e voltou à fazenda do salafrário. Não ouviu mugido dessa vez e o seu coração apertou.

O céu azul, sem nuvem nenhuma, um vento morno na tarde avançada soprou da lagoa enquanto Simões almoçava, quando ouviu a pequena neta indagar se era verdade que ele não comia carne de boi. Ele relembrou o amigo Campeão, a antiga precisão do dinheiro, o comprador que dificultou seu sossego, o adeus. E sua vista embaçou as lentes dos óculos, refletindo a paisagem cercada pela lagoa salgada próxima. Ele meio que sorriu à curiosa menina, apontando para a boca cheia de comida que o impedia de responder.

(Conto já classificado em terceiro lugar no Prêmio Mário Quintana / Sisejufe / RS)


Nenhum comentário: