Campeão
Simões não se cansava de admirar Campeão. Este é o boi mais bonito que existe! E
relembrava a infância, quando chegara com seus pais àquela cidade. Ele espiava
bois ao longe, em pasto alheio. Debaixo do céu azul e sem nuvens, o vento
sorrateiro lhe voava o chapéu e o pai ria. Bichos
bonitos aqueles, filho! Um dia teremos os nossos. O menino Simões ficava a
sonhar com o tal dia e calculava o espaço gramado ao redor da casa onde poderia
criar um boi só dele, de estimação, chegando até mesmo a escolher o nome do
animal com antecedência: Campeão. Talvez por relembrar conversas acerca dos
rodeios que ouvira ainda pequenino na pátria deixada além-mar; talvez porque
confundisse a rotina de um boi com a de um cavalo, sonhando com uma futura glória
nos páreos.
A esposa chamou-o para ajudar a servir o almoço
aos fregueses, despertando-o das antigas lembranças. No espaço avarandado,
todas as mesas ocupadas. Trabalhadores famintos aguardavam a vez. Eram três
horas seguidas em que ele e a patroa cuidavam
de atender, deitando e recolhendo pratos às mesas. E eram as horas mais quentes
do dia... O calor da cozinha se espalhava para a bancada de comida e para a
varanda; e o calor do sol da tarde adentrava a casa toda. Todos os dias iguais,
com exceção do domingo. A família cozinhando, lavando louça, fazendo o caixa,
servindo. E as mesas de refeição ocupadas, lado a lado, sorrindo-lhes com o
ganha-pão.
Junto com o boi Campeão, Simões adquiriu o
Choquito, outro boi, que não era elegante como Campeão, mas que lhe rendeu o
prazer do investimento, podendo, desta forma, chamá-los no plural de “bois”.
Seu pai, a este tempo, avançado em idade, admirava o filho a falar da rotina do
pasto, discutindo acerca de gado... Realmente,
dizia o pai, Campeão tem porte de artista,
é bem-apessoado, de pelo brilhante, um belo animal. Foi então que aconteceu
uma reviravolta de ordem econômica a Simões, comprometendo-lhe o capital. Ainda
bem que, àquela altura, ele já tinha o seu teto e comércio relativamente garantidos
para si e para a família, porém sentiu nos ombros o peso que o pai antes
conhecera na pátria lusa. Simões precisou levantar dinheiro extra para cumprir
compromissos. E o resgate disponível era vender um boi. Resolveu então vender o
Choquito.
Ainda cedo, céu azul e nenhuma nuvem. Um vento morno vinha da lagoa próxima, se bom
ou mau vento, Simões não sabia, mas avistou, enquanto cuidava do pasto, o
comprador que lhe fora indicado para negociar. O gajo chegou. Ficou a olhar o Choquito
por meio minuto. __ Quero o outro e pago
bem. A surpresa quase derrubou Simões. Como
assim, o outro? Por que não tivera a ideia de guardar o Campeão? Estava claro
que aquele boi ia chamar mais a atenção do comprador... Mas onde se poderia
esconder um animal tão grande? Tudo isso Simões se perguntou em silêncio.
Se a surpresa quase o derrubou, a responsabilidade o reergueu.
Depois que Campeão partiu, Simões era só
tristeza. Dava um dó tamanho vê-lo sem o Campeão. A esposa se afligia, o pai se
inquietava, os filhos se calavam... Na manhã do terceiro dia sem o boi, Simões
foi atrás do fazendeiro. Daria o Choquito
em troca e pagaria um valor adicional, mas traria o Campeão de volta. O
fazendeiro era um comerciante ocupado e não quis conversa de devolver boi. __ Que boi esse? Já foi para o abate! Não tem
mais nenhum boi teu aqui...
Ao longe, o céu azul, nenhuma nuvem. O vento
sobreveio ao chapéu, voando longe. Mais distante ficou a esperança de reaver o
boi Campeão. Por fim, Simões resolveu fazer novo acordo com o mercador: entregaria
o boi Choquito a ele e, se dentro de dois meses, Simões não pudesse dobrar o
valor de Campeão em dinheiro para lhe pagar, ele então entregaria os dois bois
ao negociante. Era uma insanidade,
cogitava Simões. O pai deixou-o resolver sozinho, não queria interferir. A
esposa olhava-o ansiosa. Todos em casa sabiam de uma coisa: ia faltar dinheiro
se Campeão voltasse. Irrecusável a proposta, no entanto, o comprador de Campeão
não o quis devolver, e por maldade, pura maldade __ para que avisou? __ Mandou
comunicar que o boi iria para o abate.
Simões ouvia o boi mugir toda vez que ali
chegava para tentar renegociar, e era bem possível que a sua imaginação o
iludisse, fazendo-o imaginar ouvir as lamúrias do boi. Porém Simões pressentia
que Campeão queria voltar para o pequeno e antigo pasto. E daí, ele decidiu-se
por um ato de loucura: foi ao banco mais próximo e levantou a quantia do boi a
juros altos, tomou do dinheiro vivo e voltou à fazenda do salafrário. Não ouviu
mugido dessa vez e o seu coração apertou.
O céu azul, sem nuvem nenhuma, um vento morno na tarde avançada soprou da lagoa enquanto Simões almoçava, quando ouviu a pequena neta indagar se era verdade que ele não comia carne de boi. Ele relembrou o amigo Campeão, a antiga precisão do dinheiro, o comprador que dificultou seu sossego, o adeus. E sua vista embaçou as lentes dos óculos, refletindo a paisagem cercada pela lagoa salgada próxima. Ele meio que sorriu à curiosa menina, apontando para a boca cheia de comida que o impedia de responder.
(Conto já classificado em terceiro lugar no Prêmio Mário Quintana / Sisejufe / RS)
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