sexta-feira, 20 de outubro de 2023

2º lugar na categoria estadual do Concurso Literário da Academia Madureirense de Letras 2023 - Cris Dakinis

 Conto premiado:

A testemunha

 

Aproximou-se da grade e olhou para fora. Sentia-se protegida ali, absurdamente livre. E ela novamente lembrou-se do papagaio...

Gaio era paciente. Luana fez um carinho na ave e estremeceu ao ouvir os chinelos do marido atravessando o corredor. Gilberto reclamou que a situação só piorava e resolveu sair, mas antes decidiu voltar para repetir o aviso: ela que se livrasse daquela ave o mais rápido ou ele o faria __ não queria mais aturar aporrinhações. Ameaça feita e refeita, o marido foi almoçar seu galeto com prato feito no bar da esquina, onde comeria sem esquentar os ânimos.

Luana alimentou a ave e foi recolher a roupa estendida a secar. Reparou a vizinha a olhá-la pelas frestas do portão lateral. Droga de condomínio que construíra aqueles muros com portão geminado! Daí, percebeu que a vizinha a observava com um sorriso estreito e insondável. E foi nesse momento que a dona fez propaganda de seus serviços de doceira. Encabulada, Luana agradeceu a oferta, desconfiada de que a vizinha certamente lhe oferecia doces porque lhe adivinhara a amargura diária.

 Ao abrir a gaveta dele para guardar as roupas, Luana viu a arma. Apanhou o revólver para ver se era de verdade. Era. Ela decidiu levar a arma para a cozinha, guardando-a debaixo dos panos de copa, frustrando qualquer ato de insanidade.

O marido chegou, seguiu para a cozinha, olhou-a e pediu um café. Depois, encarou-a com um ar desafiador e dispensou o café, rumando para o quarto. Luana ficou atenta e ouviu o ruído da gaveta do armário. Arrependeu-se de não ter dado conversa à vizinha, poderia ter aceitado uma prova de doce.  Gilberto certamente dera pela falta da arma... Ele seguiu para a cozinha e lá estava Luana.

Um tiro, outro e depois mais outro ecoaram largamente, além dos ladrilhos da copa, pelo condomínio inteiro.

Não atira. Não atira, mulher! O papagaio repetia o tempo inteiro: Não atira. Não atira, mulher! 

Luana aproximou-se da grade e olhou para fora. Sentia-se protegida ali, absurdamente livre, em sua cela novamente. E lembrou-se do papagaio... A testemunha.